quarta-feira, 9 de abril de 2008

Bichos

Era recém-nascida noite. A casa imersa na voz grave do cantor argentino acolhia o silêncio. Os corpos nus, ainda úmidos, guardavam o cheiro de água morna e espuma. Lado a lado. Um par.
Angélique espiava os olhos do homem, escondidos sobre os cílios espessos. “Olhos de cachorro”, ele havia dito certa vez. Sorriu. “Um bicho”, pensou. Espichou-se feito gato. Contraste. Inimigo espreitando a fera adormecida. Na caixa procurou a arma que o feriria. Negra.

Rodeou a cama, observadora. Aproximou-se do homem e alongou-se sobre o seu corpo. Gazela. Acariciou os braços firmes, as mãos que gostavam de dizer o mundo. Alongou-se sobre ele. Enguia. Reconhecendo a dona, Georges obedeceu. Espreguiçou-se, levando os braços acima da cabeça. Foi então que ela o atacou. Serpente.

Sem hesitar amarrou os pulsos na cabeceira de ferro da cama. Escorregou sobre o seu corpo e amarrou-lhe os pés. Somente então ele abriu os olhos. Encarava-a. Um misto de surpresa e fúria. Entredentes rosnou: cadela.

Ela então apagou a luz e retirou-se do quarto. Georges tentou soltar-se, mas o que havia ali era mais do que lenços, eram nós. Percebeu-se submetido e isso o deixou irado. Gritou pelo nome dela, mas ela não respondia. Aguçou os ouvidos e o faro. Longe, a voz de Angélique cantarolava em alguma outra peça da casa (como haver tanta paixão na melancolia?). Seu corpo estava tenso, a respiração ofegante, quando ela entrou no quarto.

A luz tremulante da vela iluminou a penumbra. Os olhos dele iluminaram-se também. O corpo nu da mulher sibilava, quase um espectro cortando a sombra densa. A vela na mão direita, até então afastada, aproximou-se do rosto da mulher. Havia nos olhos dela uma selvageria que o acuou.

Angélique, sem tirar os olhos da presa, contornava o corpo com a chama. Todas as curvas acesas. O ombro torneado, os seios e os mamilos como setas, o ventre fértil de gozos, a virilha nua. Acomodou o castiçal na mesinha ao lado da poltrona que havia na diagonal da cama. Sentou-se, afundou-se no tecido felpudo, empurrando com as costas o encosto do móvel. Assim, reclinada, abriu as pernas.

A mão que antes guardava o fogo, agora o acendia no próprio corpo. Angélique tocava-se diante dele. Distante dele. As unhas vermelhas pareciam pequenas feridas sobre a pele delicada de sua boceta. A luz fraca não disfarçava a caverna úmida da mulher, que rebolava lentamente sobre si mesma. Os dedos experientes falavam entre os sussurrados ais da fêmea.

Georges gemeu alto. Seu corpo agitou-se na cama. Mas ele estava cativo. O sexo ereto sem abrigo. Sentia-se um bicho. Assustado e raivoso, queria saltar sobre ela, penetrá-la com força. Humano, controlava-se.

Ela então levantou-se. Gigantesca. Lançou-se sobre o corpo dele, sugando-lhe o pescoço, o peito, alagando-lhe o umbigo. As unhas arranhavam as costas e a lateral do corpo do homem. Georges implorou que o soltasse. Ela não o ouvia. Experimentou seu corpo inteiro, lambeu-lhe ente os dedos dos pés, entre as coxas, mordeu-o. Era o gosto que já conhecia, mil vezes devorado. Decorado. Georges era seu banquete.

Afastou-se, fazendo-o pensar que estava saciada. Deixou-o retomar a respiração. Chamá-la de todas as palavras mais sujas para quem não conhece o desejo. Ameaçá-la. E riu, riu como louca. Desvairada. Calou-se somente quando engoliu, de uma só vez, a carne mais nobre da caça.

Nenhum comentário: