sábado, 29 de março de 2008

Penumbra

Georges tocou-a primeiro com os olhos. Os olhos fixos sob as pestanas escuras. Os dela semicerraram-se. Fugidios. Buscaram desesperadamente um abrigo dentro da razão. Ela olhou para o copo na sua frente. Ele também suava, repleto de um líquido quente e trêmulo. Corou. Foi o sinal que Georges esperava. Aproximou-se lento e firme. Velho e menino num mesmo corpo. Seguro, encaminhou-a, com mão forte sobre sua cintura através das escadas que os retirou da fumaça do bar e os entregou à noite úmida.

A pele de Angélique arrepiou-se. Mais. Georges puxou delicadamente os cabelos tintos, descobrindo a palavra dela e falou a sua pela primeira vez, baixo - quase um sopro. Acompanhe-me. Ela obedeceu. Havia um quê de ordem naquele quase silêncio. Caminharam algumas quadras, poucas.

O prédio tinha um corredor largo e escuro. A luz sob as portas deixava perceber os azulejos brancos, num desenho geométrico. Ela olhava para dentro, mas fingia olhar o chão. Inebriada pela bebida ainda, pelo cheiro do homem que andava agora à sua frente, pela mão quente a qual a sua estava algemada. Ele abriu a porta, a última à direita e encaminhou-a para dentro. Não havia luz alguma.

Cega, ela encostou-se à parede, buscando alguma forma de solidez. Não encontrou. Ouvia a respiração de Georges, próxima, mas era tal o breu e a embriaguez que não conseguia distinguir onde ele estava. Sentiu, subitamente, as mesmas mãos fortes virando-a. O rosto na cal fria.

Georges desabotoou sua blusa, o corpo colado em suas costas. Os dedos ágeis, o braço roçando-lhe os seios. Beijou-lhe o pescoço, os ombros, a nuca. Percorreu com a língua as vértebras da coluna esguia, enquanto suas mãos continuavam acariciando os mamilos tesos, o abdômen tenso pela respiração entrecortada de Angélique.

Correu os dedos ao longo das pernas. Primeiro os pés, em ponta sob o salto. Por sob a saia, circulou as coxas, o quadril. Abriu o fecho e deixou que a peça deslizasse sobre o mesmo caminho que havia percorrido. Retirou a última peça, a menor. Com os dentes.

Afastou-se de súbito. Mais palavras. Não se mova. Ela continuou estática. O braço direito dobrado, o dorso da mão protegendo a boca que pedia por mais. Não pediu. Georges a observava como a uma pintura. O corpo alvo sobre a parede mais alva ainda. O branco banhado de penumbra. Ele a mirava com olhos de gato. Vampiro.

Como se tivesse transformado, jogou-se sobre o corpo trêmulo da mulher. Sem delicadezas. Georges a acariciava agora com força. Um desbravador obstinado em fazê-la render-se. Angélique rendia-se. Múltiplas vezes, mas não pedia jamais que ele se afastasse, ou que retirasse a boca faminta de seu sexo. Ele então virou-a novamente. Olhou-a nos olhos antes de sugar-lhe os seios com uma sede milenar. Angélique mordia a palma da mão. A face direita colada à parede, os olhos vidrados no que não podia ver.

Georges ergueu-a, então, e a depositou sobre seu membro. Escorregou para dentro dela, sinuoso, serpente. Era o ombro dele agora que ela mordia, com força, enquanto ele a invadia. O sereno da noite era agora rio nos corpos quentes dos amantes. Os gemidos antes abafados avolumaram-se até transformarem-se em palavras incompreensíveis, em desejos impronunciáveis em qualquer outro lugar que não fosse aquele cubo negro. Um grito explodiu subitamente, iluminando o corredor quadriculado do prédio.

Era noite, mas ninguém mais dormia.

quarta-feira, 26 de março de 2008

A imagem por trás da tela

Todas as noites em que Cassandra chegava em casa depois da meia noite, de mau humor, subia as escadas fazendo barulho, com o cigarro aceso numa mão e um molho de chaves na outra. Parava no topo da escada resmungando coisas inaudíveis, ligava a luz do corredor e ia, a passos pesados, ao quarto de sua irmã, Lívia. Abria a porta, como quem quer tomar satisfações de algo, e se avolumava na entrada.
O quarto exalava um cheiro heterogêneo, uma mistura de fumaça de cigarro e perfume caro. No cinzeiro havia muita cinza e uns quatros filtros amassados. Uma garrafa de vodca vazia, algumas revistas, sapatos e uma bolsa estavam jogados no chão.
Finalmente, espalhada em cima da cama estava sua irmã Lívia, vestida num pijama estampado de ursinhos. Cassandra ligou a luz do quarto, revelando uma bagunça muito maior.

— Quantas vezes eu vou ter que dizer que eu não quero que você fume dentro de casa? — falou, muito nervosa.

Lívia não respondeu

— Quantas vezes eu vou ter que dizer que eu não quero que você fume dentro de casa? — gritou.

Lívia mexeu-se na cama e tapou os ouvidos com uma almofada.

— Não finja quenão está me ouvindo, Lívia! — continuou — Quantas vezes eu vou ter que dizer que eu não quero que você fume dentro de casa? Quantas vezes? — gritou.

Lívia apertou mais ainda a almofada nos ouvidos. Irada, Cassandra pegou o cinzeiro e o atirou no espelho, que trincou, fragmentando a imagem de sua silhueta na porta.
Lívia levantou de súbito da cama, olhando para o espelho quebrado. Voltou-se para sua irmã mais velha e a encarou, nervosa.

— Quantos homens você vai ter que amar para esquecer desse dia, Cassandra?

— Você está bêbada... — disse Cassandra.

— Quantos homens você vai ter que abandonar para esquecer dessa noite, querida irmã? — falou Lívia, fitando a irmã nos olhos.

— Você não respondeu a minha pergunta! — gritou Cassandra.

— Quantos anos mais você vai tentar repetir tudo aquilo? Eu quero entender! Quantos homens mais você vai ter que usar para esquecer do que aconteceu, sua velha maldita? — disse Lívia, iniciando ali mais uma das brigas mais faladas em todo prédio.

sexta-feira, 14 de março de 2008

Uma Folha Qualquer

Como já dizia Raul, 'Se uma flor é uma flor/ e não tem outro jeito da gente dizer/ Pra que mentir?/ Se eu sei, eu sei..'. Muitas pessoas tentam rotular seus sentimentos, atribuindo-lhes qualidades e adjetivos. Mas por que fazê-lo?!
Eu, se tivesse em minhas mãos uma folha qualquer, procuraria expressar meus sentimentos da forma mais pura, verdadeira e simples possível. Sem maquiá-los ou enfeitá-los, sem abusar dos arranjos sintáticos, sem lançar mão das metáforas, hipérboles e afins.
Diria aos meus amigos quão especiais eles são para mim, somente pelo fato de existirem. Ao meu pai, o quanto é bom tê-lo verdadeiramente de volta, agora que seus sorrisos e gargalhadas espalhafatosas voltaram realmente a encher a casa, e ele anda despreocupado pela rua. Àquela pessoa em especial, tudo o que sinto, reiterado, para sempre. Enfim, diria tantas coisas a tantas pessoas.
Infelizmente, nem sempre pode ser assim. As pessoas mais sinceras são as mais mal-interpretadas. Um 'eu te amo' na hora errada pode fazer a relação acabar. Temos que fazer a nossa parte, correr os riscos e torcer para, ainda com Raulzito, as pessoas perceberem 'a beleza da simplicidade'.

quinta-feira, 13 de março de 2008

5.000.000.000 de anos

Um dia nossa Via Láctea vai se chocar com a Nebulosa de Andrômeda. Após isso, presume-se, uma nova chance à vida vai se formar, e talvez toda memória que preservamos se extinguirá. É claro que levará muito tempo pra isso, algo em torno de cinco bilhões de anos. Mas é algo palpável, segundo a ciência.

Pensando assim não dá muita vontade de escrever poesia, um conto elaborado, um diário ou mesmo uma pequena anotação. Não dá vontade de ter filhos, de plantar uma árvore ou de ajudar o próximo. Pensando assim não há muitos bons motivos para deixar nada pra posteridade, até porque a natureza do Cosmo não costuma fazer acordos. Não há muitos bons motivos pra tanto labor e tristeza, tanta riqueza e empatia, a posteridade está condenada.

Mesmo assim, se nem de perto a nossa Via Láctea passar da Nebulosa de Andrômeda, cinco bilhões de anos mais tarde será tempo suficiente para apagar qualquer aviso que se dê hoje, e hoje será um passado tão remoto que será ignorado. Imagine alguém que pesquisa um passado de cinco bilhões de anos. Agora imagine esse alguém tomado da vontade de fazer um exercício de concentração para entender o que se passa hoje. Hum, pensando assim aquele, cinco bilhões de anos na nossa frente, não estará muito mais evoluido do que os de hoje.

Pronto! Mexer com o futuro é mais danoso do que fuçar o passado. Prefiro ser finito, de oitenta e poucos anos e dois filhos, cinco netos e um bisneto que levará meu nome. Prefiro sentar-me e imaginar que daqui a cinco bilhões de anos eu não vou ter feito a menor diferença pras rotas cósmicas da nossa galáxia.

Pelo menos até que eu me mude.

terça-feira, 11 de março de 2008

A Segunda

Era sempre assim (e lhe caía tão bem)
mais bela do que acreditava ser,
mais alta do que acreditava ser,
mais interessante do que acreditava ser.

Não era o caso - e compreendam bem - que se diminuísse ou se julgasse mercadoria de segunda. Pode-se dizer que conhecia demais suas limitações e ilimitações e emprestava às duas um pouco de exagero - mas não desse exagero vulgar ou dramático - um excesso contido e sensato, pouco livresco. Devia se conhecer bem e isso a satisfazia de tal forma que não podia deixar de sorrir molemente, patética, num orgulho leve e etéreo.

Chegava sempre perto demais e preferia imaginar como seria do que viver o que será e - e eu lembro tão bem! - na hora agá estremecia e dava um passo para trás e deixava que fossem na sua frente, principalmente se o mérito fosse o cara de quem ela gostava há um tempão. E nessas se enchia internamente de um pranto feliz que corria como um rio por suas entranhas, arrastando qualquer mácula e dissipando-a de tal forma que flutuava. Guardava bem a situação e gostava dessa condição de zeladora das coisas, das pessoas, uma espécie de anjo que vela a felicidade geral que é a sua própria felicidade porque se sentia todos e cadaum. Ficava externa, protegida e limpa (porque CONCRETIZAR é sujar as mãos e sujeitar o ideal aos limites e carrancas da realidade, desvirtuar o que se ama e o que é motriz).

E lhe caía tão bem porque não era dada ao ato e não sabia como fazer ao certo e nem como manter o que se conquistava e lhe parecia absurda a condição de eleita, de escolhida, de primeira.

domingo, 9 de março de 2008



Já dizia Fernando Pessoa:

o poeta é um fingidor
finge tão completamente
que chega a fingir que é dor
a dor que deveras sente




O ato de fingir é menos dolorido do que de ser verdadeiro. Somos humanos numa tentativa de esconder nossa brutalidade instintiva. O que nos faz humano é o falso, não o polegar em pinça. Escrever é uma mentira, serAngélique é uma mentira, as rosas em botão são uma mentira, ou todo meu amor. O amor nem sequer existe, então fingimos que amamos e, vez por outra, fingimos que somos felizes.

Eu já gozei como Sally, já ri pra não perder o amigo, já dormi quando não tinha sono, já fiquei acordada por obrigação, já li até o final por pura birra, já deixei de chorar por orgulho, já bebi pra não me enxergar. E silencio o grito escrevendo, silencio o grito que deveria ecoar e assustar a velhinha que passeia calmamente com o poodle, fingindo que ele é o filho que nunca vem. Eu nem chuto o poodle, que é chato e suja a calçada, porque é necessário fingir-me Pessoa.

O ato de fingir é menos dolorido que ser verdadeiro?

sexta-feira, 7 de março de 2008


Rosa prá se ver, prá se admirar
Rosa prá crescer, Rosa prá brotar
Rosa prá viver, Rosa prá se amar
Rosa prá colher, e despetalar

Rosa prá dormir, Rosa prá acordar
Rosa prá sorrir, Rosa prá chorar
Rosa prá partir, Rosa prá ficar
E se ter mais uma Rosa mulher...

É primavera
É a rosa em botão
Ai! Quem me dera!
Uma rosa no coração...

Rosa prá se ver, Prá se admirar
Rosa prá crescer, Rosa prá brotar
Rosa prá viver, Rosa prá se amar
Rosa prá colher, e despetalar...

Rosa prá dormir, Rosa prá acordar
Rosa prá sorrir, Rosa prá chorar
Rosa prá partir, Rosa prá ficar
E se ter mais uma Rosa mulher...

É primavera
É a rosa em botão
Ai! Quem me dera!
Uma rosa no coração...

Rosa prá se ver, Prá se admirar
Rosa prá crescer, Rosa prá brotar
Rosa prá viver, Rosa prá se amar
Rosa prá colher, e despetalar...

Rosa prá dormir, Rosa prá acordar
Rosa prá sorrir, Rosa prá chorar
Rosa prá partir, Rosa prá ficar
E se ter mais uma Rosa mulher...
E se ter mais uma Rosa mulher...

(Samba da Rosa, Vinicius de Moraes)